segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Visitas reais (a Ponte de Lima)

Em geito de reportagem...

Ao Amândio Vieira, da Foto Lethes

      O fotógrafo tinha sido prevenido de que naquela tarde uma comitiva ilustre havia de atravessar a ponte sobre o Rio Lima e era necessário que alguém ali se deslocasse com a missão de registar para o futuro as imagens dessa histórica passagem. Estava um acolhedor dia de sol, uma dessas meigas tardes de início de outono, em que o ar é sereno e não há calor nem frio, mas uma paz luminosa se estende sobre as mais simples coisas do mundo.

     Enquanto esperava, o fotógrafo sentou-se nos degraus do chafariz e, como o tempo decorria vagaroso, as pálpebras começaram a pesar e aconteceu-lhe de dormitar por uns momentos, acordando de quando em quando, no instante em que uma brisa, vinda do lado do rio, lhe acariciava a face…

      Até que lhe pareceu ouvir, em crescendo, um guizalhar de pingentes metálicos, que se afigurava já bastante próximo. Ergueu-se de um salto e duvidou se ainda estava a dormir ou se já havia acordado, ao enxergar na outra margem um séquito colorido e luminoso, antecedido por dois arautos, que vinham já a meio da ponte.

      Esfregou os olhos e, apesar de incrédulo, destravou a máquina fotográfica e começou a focar a objectiva, com o fito de colher as melhores imagens do momento…
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      Precedida por um pequeno escol de cavaleiros, com a função de batedores do terreno, uma colorida e brilhante comitiva de jovens damas de honor, avançava ao redor de uma princesa de grande formosura. Era a “rainha” D. Teresa, belíssima na sua precoce viuvez, que estava para outorgar o seu foral à vila de Ponte de Lima. Antes de iniciar a travessia do rio, D. Teresa quedou-se por momentos a olhar as águas serenas, recordando a primeira vez que o atravessara, na companhia do seu valoroso noivo, o conde Henrique…



     A duvidar de si próprio – era lá possível tal recuo no tempo – o fotógrafo assestou a máquina e disparou uma série de instantâneos…

      A seguir vinha gente do povo que entoava folias e bailava, a festejar a passagem da sua “rainha”.

      Ainda o fotógrafo não estava refeito da surpresa, quando ao longe avistou outra comitiva rumorosa. Era o jovem rei D. Afonso Henriques que regressava, no meio dos seus guerreiros, depois de uma série de campanhas destinadas a levar a fronteira de Portugal para além do rio Minho.

      A alguma distância, acompanhado pelos seus homens, cavalgava o seu filho D. Sancho I, que já durante o reinado de seu pai se ocupara de algumas missões importantes na fronteira norte, tendo negociado, numa delas, a outorga do foral de Melgaço.

      O fotógrafo assestava a máquina e recolhia instantâneo após instantâneo: frontes desassombradas, tezes bronzeadas pelo sol, braços musculosos a segurar armas que espalhavam reflexos sob a luz do sol…

      E logo outro cortejo se aproximava, sem alardes de guerra, mas com pompa e alarido: D. Afonso III, seguido pelos principais da sua corte, deslocava-se a Ponte de Lima, com o fim de aí se encontrar com o Bispo de Tui – diocese cuja metade sul era portuguesa – para negociar aspectos relacionados com a outorga do foral de Viana.

     O fotógrafo substituiu a película e, sem conseguir refazer-se do assombro, disparava um e outro e mais outro “flash”…

      Ainda D. Afonso III acenava a despedir-se do notável bispo D. Gil Peres de Cerveira – também ele um português de boa cepa – e já ao longe cavalgava outro tropel colorido e ruidoso. É um jovem rei, que rodeado por um séquito de músicos, letrados e poetas, iniciava pelo norte do país a sua visita ao território no início do reinado: D. Dinis. Depois de olhar para o que restava da velha ponte romana, em ruínas, tornando inviável a passagem do rio, a não ser a vau, na altura mais seca do ano, ou em cima de uma barca, El-Rei ordena a construção de uma nova ponte, que há-de ser durante muitos séculos uma das mais belas e maiores da cristandade!

      E quem se aproximava naquela turba que já à distancia se lobrigava, na qual predominavam as mais formosas e recatadas mulheres que havia em Portugal? Era a Rainha a que o povo já chamava Santa – a Rainha S. Isabel – que se dirigia, com as sua damas de honor e alguns pagens, em peregrinação a Santiago de Compostela, com grandes dádivas para o santuário: os seus atavios de rainha, entre os quais a magnífica coroa marchetada de pedras preciosas, uma cavalgadura com os arreios de ouro, prata e pedrarias, vasos e paramentos litúrgicos, e luxuosos tecidos com as armas de Portugal e de Aragão, sua terra natal. Em sinal de agradecimento, o Arcebispo de Santiago dar-lhe-ia uma bolsa e um bordão de peregrina, feitos especialmente para ela e que, na última peregrinação da vida, levaria consigo para o túmulo (onde se encontrarão quando o abrirem, em 1612).

      O nosso fotógrafo sentia-se emocionado. Nunca fizera e tinha a certeza de que não voltaria a fazer reportagem igual. Nem parecia verdade…
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      Romântica e suave era a melodia que agora se ouvia ao longe, cantando amores proibidos mas sinceros e profundos, cujo crescendo anunciava o avizinhar-se de outro cortejo de variadas gentes – cortesãos, guerreiros, mestres de obras – que acompanhavam D. Pedro I, na deslocação à vila de Ponte, para tratar da construção de uma nova e mais forte e ampla muralha. Na despedida, D. Pedro anunciava ao corregedor Álvaro Pais a sua intenção de voltar par observar a obra concluída. Tornava-se, com efeito, grandiosa a vila com a nova cinta de granito e doze torres altaneiras, colocadas a espaços, duas inclusivamente nos extremos da ponte…


      E o fotógrafo não esmorecia…

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      Chegaram tempos de guerra, porque morreu El-Rei D. Fernando e a monarquia castelhana desejava assenhorear-se de Portugal. Em Ponte de Lima, um grupo de espanhóis e de portugueses seus apaniguados dominam a vila, tendo encerrado as entradas das muralhas – emparedaram até as portas, com excepção da ponte. Mas, aguardando o momento adequado para agir, há muitos patriotas no interior da povoação. Com alegria e alvoroço, recebem a notícia de que se aproximam as hostes de D. João I e D. Nuno Álvares Pereira, que tomarão a vila aos partidários do rei de Castela, em 20 de Maio de 1385. Daqui a alguns anos – em Março e Outubro de 1388 e em Maio de 1398 – D. João I voltará a estanciar em Ponte de Lima, ainda no decurso da guerras da independência, que só terminarão no ano seguinte.
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      O nosso fotógrafo, que, mais do que uma vez, sentira os virotes e a estopa inflamada a passar-lhe de raspão por cima da cabeça, respirou de alívio…

     Mas já ao longe se ouviam as trombetas e os pregoeiros a anunciar a aproximação do mais grandioso séquito real que alguma vez atravessou Ponte de Lima. É D. Manuel, o Venturoso rei, que “neste” ano da graça de 1502 fora a Santiago de Compostela prestar homenagem ao Apóstolo e rogar a sua intercessão para obter a protecção necessária a tantos portugueses que andavam espalhados pelos quatro cantos do mundo. Junto do altar de Santiago deixou a arder numa esplendorosa lâmpada votiva, feita de prata e em forma de torre, uma chama viva permanente alimentada com o melhor azeite, fornecido pelo almoxarifado de Ponte de Lima. Para que se mostrasse mais bela e facilmente calcorreada pelos viandantes locais e pelos peregrinos de Santiago, D. Manuel – dirá uma inscrição lapidar – mandou pôr ameias e renovar a calçada da ponte.
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      O cortejo não termina. Depois de D. Manuel e entrado o ano de 1549, Ponte de Lima é atravessada pelo esperançoso infante D. Luís, acompanhado do já célebre Francisco de Holanda.
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      O fotógrafo, que já se sentia extenuado, rejubilava com a extraordinária recolha de imagens… Irá repousar algum tempo antes que novo séquito de personagens tão insignes se aproxime.
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       Mas eis que, já corria o ano de 1872, D. Luís I, na companhia do seu preclaro irmão, o infante D. Augusto, chega a Ponte de Lima, onde o seu coração magnânimo o leva a visitar as enfermarias do Hospital da Misericórdia.7
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      Logo a seguir o fotógrafo reparou que já não estava sozinho no seu mester – e até se interrogava se não havia alguma incongruência nos momentos que estava a viver – porque as invenções dos tempos fizeram aparecer as máquinas com que outros colegas se entregavam a igual ofício. Mas não se dedicou com menos afinco a colher imagens do esperançoso príncipe herdeiro D. Luís Filipe, que, em 8 de Outubro de 1901, visitava Ponte de Lima, acompanhado pelo seu aio, o heróico Mousinho de Albuquerque. Os pontelimenses haviam de mostrar a sua simpatia para com o príncipe, ao dar o seu nome à avenida marginal que vai ter à Senhora da Guia.
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Não eram visitantes régios, mas eram reais...
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      Apercebeu-se o fotógrafo de que no intervalo destes séquitos de gente ilustre, muitos outros mortais atravessavam Ponte de Lima, vindos de longínquas terras, alguns talvez só em pensamento, como S. Francisco de Assis ou o grande Miguel Ângelo da Capela Sistina, que deixou registada por escrito a sua intenção de ir a Santiago. E daqueles que não puderam atravessar Ponte de Lima em sua vida, para ir a Santiago, segundo a lenda, as almas fazem parte dessa multidão de pombas luminosas – as estrelas da Via Láctea – que realizam a sua peregrinação, passando lá em cima, sobre as nossas cabeças, nas serenas e calmas noites do estio…

      Também dessas o fotógrafo desejava captar a imagem com a límpida objectiva da sua máquina. Era necessário voar, voar muito alto, através do espaço. Levantou-se e ainda tentou erguer-se da terra. Mas pesou-lhe tanto o corpo que de novo lhe caiu sobre o chão de que desejava levantar-se. Ao cair por terra, estremeceu, e, abrindo os olhos de vagar, olhou à sua volta… Sorriram as lavradeiras, que, em traje de festa, se encontravam na proximidade.



      Acabara de acordar de um dos mais fascinantes sonhos de toda a sua vida. E apercebeu-se então de que ainda não tinha começado a reportagem. Talvez fosse possível concretizá-la por ocasião do cortejo histórico das próximas Feiras Novas! Ou de qualquer outro, no futuro...

      Ponte de Lima, 1 de Julho de 2002
António Matos Reis