“A vida do homem
quanto dura?
Apenas o que dura o
orvalho da manhã”.
Estes versos dum
poema chinês do período Tang ajudam-me a dar início ao texto que me comprometi
a redigir acerca dos trabalhos de índole histórica da autoria de Luís Dantas.
Mais novo do que eu tantos anos quantos os versos dum “haikai”, cedo despertou
a minha atenção pela sua agilidade na arte de usar a palavra, que transparecia logo
nos primeiros textos que publicou na imprensa local. Sempre considerei
modelares os seus escritos, do género daqueles que viriam a ser reunidos no
álbum Figuras Populares de Ponte de Lima,
mistos de crónica, acutilância psicológica e arte de escrever.
Pela época em que prestava
serviço militar e logo depois, quando se mudou para Lisboa, surpreendeu-nos com
dois livros de poesia, dos quais, na altura, tive ocasião de ler os versos de Bolero
Bar, não menos perturbadores pela sensibilidade social que traduzem do
que pela economia e depuração da linguagem em que ganham forma e se movem as sombras
nocturnas.
Depois, no âmbito
literário, seguiu-se o que penso ter sido uma longa travessia do deserto,
poucas vezes interrompida, não sei por entre que dunas ou oásis. Até que
finalmente apareceu o Luís Dantas a manejar com destreza as ferramentas de investigador,
sem abdicar da linguagem apurada que era seu apanágio. Preparou-se,
discretamente, como aluno trabalhador, frequentando o curso de História, na
Universidade, e optou depois pela via do ensino, ao mesmo tempo que dava início
a uma promissora carreira de historiador, cedo, para nosso mal, interrompida.
Como resultado,
talvez, da envolvência académica, os seus primeiros trabalhos focam assuntos de
âmbito global, de tanto interesse como A
Água na Primeiras Civilizações (1999), dedicado a uma temática que
condicionou desde o início a existência e a sobrevivência da humanidade, ou o Vinho nas Primeiras Civilizações (1999),
que complementa o tema anterior no que representa, e representou sobretudo no
passado, como suporte do quotidiano, fornecedor de energias, comunicador de
vida, estimulador do espírito e motor das economias. O que surpreende em Luís
Dantas é a simultaneidade entre o conhecimento das matérias tratadas, o recorte
literário e a clareza didáctica da exposição, sinal da identificação do cientista
com a vertente do ensino, que então o ocupava. Nesse âmbito é de enquadrar Viagens e Descobertas (1999), uma
agradável e bem fundamentada exposição sobre a saga marítima dos portugueses.
Mas a história
global e a história nacional restituíram Luís Dantas a Ponte de Lima. A
primeira monografia de tema histórico que nos legou tratava precisamente de Ponte de Lima na Revolução de 1383
(1993). Luís Dantas, apoiado no relato de
Fernão Lopes, pretendeu e conseguiu com êxito fornecer aos limianos a versão
actual dos acontecimentos que, nos finais do século XIV, tiveram como cenário a
vila de Ponte e como protagonistas os seus habitantes, apostados em defender a
sua autonomia em relação a Castela. Ampliando o leque das suas fontes, e
alargando o campo de acção a toda a província do Minho, A Revolta da Maria da Fonte,
já publicada depois de se iniciar o novo milénio (2001), leva-nos a
reviver outra época intensa da nossa história.
A pequena história
local dá-lhe ocasião para redigir uma interessante plaquete dedicada aos alvores pontelimenses da sétima arte, com O Cinema Olympia em Ponte de Lima
(2006). A partir daí, a sua terra natal passa a fornecer-lhe temas para estudos
cada vez mais extensos. Visceralmente limiano, ainda por cima nascido na Rua do Arrabalde, atrai-o o fadário do
touro corrido pelas ruas na véspera do Corpo de Deus, uma celebração em que se
conjugam a história, o mito, a religião, os resquícios de marialvismo, e a
animação a que serve de pretexto, que tudo é objecto da monografia A Vaca das Cordas em Ponte de Lima
(2006).
Os grandes e
pequenos dramas dos seus concidadãos nunca deixaram de o inquietar. A Arte e a Guerra 1914-1918 (2007) debruça-se
sobre os reflexos que os acontecimentos bélicos tiveram nos movimentos
artísticos e nas diversas manifestações da arte, sobretudo na pintura, no
cinema e na fotografia. Quando preparava este estudo para a publicação, Luís
Dantas estava a elaborar um outro, com assunto afim, mas que o tocava mais de
perto: Os Limianos na Grande Guerra
(2007) é um trabalho excepcional, pela vasta recolha de informação que exigiu e pela intensidade da
vivência que repassa as suas páginas, que se tornam densas ao evocar o heroísmo
e o sofrimento dos homens da sua terra natal.
António Feijó, a boémia estudantil e os primeiros
versos (2008), uma das obras cuja elaboração
lhe terá dado maior prazer, ao evocar uma figura tutelar, com a qual o Luís
devia sentir uma grande afinidade, quando se aproximava o ano em que se
comemorava um século e meio do nascimento do grande lírico, é dedicada ao período
da formação do poeta na Universidade de Coimbra. Esta digressão pela cidade do
Mondego dar-lhe-ia azo, para, retrocedendo no tempo, levar a cabo outro dos
seus bons estudos, cujo tema é A Geração
Coimbrã de 62 (2009), dedicada a um período charneira da nossa cultura, no
qual se encontraram tantos protagonistas da nossa história nas décadas
seguintes.
Ainda em 2009, associando
ao seu o nome da filha Catarina Dantas, publica O Circo em Ponte de Lima, em que se registam os momentos
inesquecíveis da vida local que a passagem sazonal do circo proporcionava,
evocados com ternura e abundância de elementos informativos.
O ano de 2010 ficou
marcado pela aparição de três obras com temáticas diferenciadas mas
incontornáveis na bibliografia activa do Luís Dantas. Retratos Galegos traduz o seu saber e ao mesmo tempo um grande
afecto por essa extraordinária nação dos nossos mais que irmãos de sempre, que
nascem, trabalham e vivem do outro lado da fronteira, mas que também a
ultrapassaram e ultrapassam, para nos enriquecer com o contributo do seu
trabalho, quantas vezes tão duro, e com a
sua alegria. A Geração Beat é
dedicada a esse fenómeno que entusiasmou a nossa juventude, misturando
inquietação social e romantismo, sobretudo através da versão simpática que nos
chegou através de Bob Dylan e dos seus amigos. Mas o ano de 2010 ficou ainda
assinalado pela excepcional conjugação de história, etnografia e observação
penetrante que se fundem nesse álbum de conhecimentos, memórias e vivências,
a que deu o título Os Garranos na Península Ibérica, enriquecido pelos trabalhos de
excelente qualidade fotográfica do Amândio de Sousa Vieira. O centenário da
República forneceu a Luís Dantas a motivação para se abalançar a uma exaustiva
recolha de dados sobre os Deputados do Alto Minho na Primeira República, que
não chegou a aparecer em livro, embora o valor do seu contributo prosopográfico
e o interesse para a história da região o justificassem.
Não chegara ainda a
meio o ano de 2011, quando o Luís Dantas deixou a companhia dos seus amigos.
Esse período foi todavia intenso na sua actividade literária. Ultimou vários
livros para serem editados, e, embora em parte não chegassem a ser impressos,
conhecemo-los através da sua publicação na Internet, que teve o cuidado de
providenciar. Às nossas mãos já impresso veio ter Gomes Leal: o Anjo Rebelde: ultrapassa as raias da biografia e da
crónica literária, para inserir o poeta na vivência cultural e política do seu
tempo, em que se enquadra a proclamação da República, e resulta da vastidão das
leituras e dos profundos conhecimentos do autor, complementados por uma longa
série de leituras e alicerçados num sério e metódico trabalho de investigação.
Na Internet podemos
ler Gonçalves Dias: o poeta do Maranhão,
que estuda a vida e a obra literária do vate luso-brasileiro. A vertente
transoceânica dos seus interesses literários manifesta-se também em Mário Domingues, o jornalista lisboeta,
nascido na ilha do Príncipe, cuja alma Luís Dantas soube entender. Do olvido total
salvou Luís Dantas um escritor bracarense que nasceu em 1870 e morreu cego e
quase abandonado de todos, aos 48 anos – Alberto
Madureira: um poeta esquecido é uma evocação comovente mas objectiva, que
se ajusta dramaticamente à situação de um autor que a escreve quando, sem o
saber, está prestes a concluir a sua vida.
“Ognuno sta solo sul cuor della terra
Trafitto da un raggio di sole:
Ed è subito sera”.
Salvatore Quasimodo, Acque e terre,
Florença 1930
(Cada um de nós
está sozinho sobre o coração da terra
Atravessado por um
raio de sol:
E de repente é
noite).
[Publicado na revista Limiana]