segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Luís Dantas e a História


“A vida do homem quanto dura?
Apenas o que dura o orvalho da manhã”.

Estes versos dum poema chinês do período Tang ajudam-me a dar início ao texto que me comprometi a redigir acerca dos trabalhos de índole histórica da autoria de Luís Dantas. Mais novo do que eu tantos anos quantos os versos dum “haikai”, cedo despertou a minha atenção pela sua agilidade na arte de usar a palavra, que transparecia logo nos primeiros textos que publicou na imprensa local. Sempre considerei modelares os seus escritos, do género daqueles que viriam a ser reunidos no álbum Figuras Populares de Ponte de Lima, mistos de crónica, acutilância psicológica e arte de escrever.
Pela época em que prestava serviço militar e logo depois, quando se mudou para Lisboa, surpreendeu-nos com dois livros de poesia, dos quais, na altura, tive ocasião de ler os versos de Bolero Bar, não menos perturbadores pela sensibilidade social que traduzem do que pela economia e depuração da linguagem em que ganham forma e se movem as sombras nocturnas.
Depois, no âmbito literário, seguiu-se o que penso ter sido uma longa travessia do deserto, poucas vezes interrompida, não sei por entre que dunas ou oásis. Até que finalmente apareceu o Luís Dantas a manejar com destreza as ferramentas de investigador, sem abdicar da linguagem apurada que era seu apanágio. Preparou-se, discretamente, como aluno trabalhador, frequentando o curso de História, na Universidade, e optou depois pela via do ensino, ao mesmo tempo que dava início a uma promissora carreira de historiador, cedo, para nosso mal, interrompida.
Como resultado, talvez, da envolvência académica, os seus primeiros trabalhos focam assuntos de âmbito global, de tanto interesse como A Água na Primeiras Civilizações (1999), dedicado a uma temática que condicionou desde o início a existência e a sobrevivência da humanidade, ou o Vinho nas Primeiras Civilizações (1999), que complementa o tema anterior no que representa, e representou sobretudo no passado, como suporte do quotidiano, fornecedor de energias, comunicador de vida, estimulador do espírito e motor das economias. O que surpreende em Luís Dantas é a simultaneidade entre o conhecimento das matérias tratadas, o recorte literário e a clareza didáctica da exposição, sinal da identificação do cientista com a vertente do ensino, que então o ocupava. Nesse âmbito é de enquadrar Viagens e Descobertas (1999), uma agradável e bem fundamentada exposição sobre a saga marítima dos portugueses.
Mas a história global e a história nacional restituíram Luís Dantas a Ponte de Lima. A primeira monografia de tema histórico que nos legou tratava precisamente de Ponte de Lima na Revolução de 1383 (1993). Luís Dantas, apoiado no relato de  Fernão Lopes, pretendeu e conseguiu com êxito fornecer aos limianos a versão actual dos acontecimentos que, nos finais do século XIV, tiveram como cenário a vila de Ponte e como protagonistas os seus habitantes, apostados em defender a sua autonomia em relação a Castela. Ampliando o leque das suas fontes, e alargando o campo de acção a toda a província do Minho, A Revolta da Maria da Fonte,  já publicada depois de se iniciar o novo milénio (2001), leva-nos a reviver outra época intensa da nossa história.
A pequena história local dá-lhe ocasião para redigir uma interessante plaquete dedicada aos alvores pontelimenses da sétima arte, com O Cinema Olympia em Ponte de Lima (2006). A partir daí, a sua terra natal passa a fornecer-lhe temas para estudos cada vez mais extensos. Visceralmente limiano, ainda por cima nascido na Rua do Arrabalde, atrai-o o fadário do touro corrido pelas ruas na véspera do Corpo de Deus, uma celebração em que se conjugam a história, o mito, a religião, os resquícios de marialvismo, e a animação a que serve de pretexto, que tudo é objecto da monografia A Vaca das Cordas em Ponte de Lima (2006).
Os grandes e pequenos dramas dos seus concidadãos nunca deixaram de o inquietar. A Arte e a Guerra 1914-1918 (2007) debruça-se sobre os reflexos que os acontecimentos bélicos tiveram nos movimentos artísticos e nas diversas manifestações da arte, sobretudo na pintura, no cinema e na fotografia. Quando preparava este estudo para a publicação, Luís Dantas estava a elaborar um outro, com assunto afim, mas que o tocava mais de perto: Os Limianos na Grande Guerra (2007) é um trabalho excepcional, pela vasta recolha de  informação que exigiu e pela intensidade da vivência que repassa as suas páginas, que se tornam densas ao evocar o heroísmo e o sofrimento dos homens da sua terra natal.
António Feijó, a boémia estudantil e os primeiros versos (2008), uma das obras cuja elaboração lhe terá dado maior prazer, ao evocar uma figura tutelar, com a qual o Luís devia sentir uma grande afinidade, quando se aproximava o ano em que se comemorava um século e meio do nascimento do grande lírico, é dedicada ao período da formação do poeta na Universidade de Coimbra. Esta digressão pela cidade do Mondego dar-lhe-ia azo, para, retrocedendo no tempo, levar a cabo outro dos seus bons estudos, cujo tema é A Geração Coimbrã de 62 (2009), dedicada a um período charneira da nossa cultura, no qual se encontraram tantos protagonistas da nossa história nas décadas seguintes.
Ainda em 2009, associando ao seu o nome da filha Catarina Dantas, publica O Circo em Ponte de Lima, em que se registam os momentos inesquecíveis da vida local que a passagem sazonal do circo proporcionava, evocados com ternura e abundância de elementos informativos.
O ano de 2010 ficou marcado pela aparição de três obras com temáticas diferenciadas mas incontornáveis na bibliografia activa do Luís Dantas. Retratos Galegos traduz o seu saber e ao mesmo tempo um grande afecto por essa extraordinária nação dos nossos mais que irmãos de sempre, que nascem, trabalham e vivem do outro lado da fronteira, mas que também a ultrapassaram e ultrapassam, para nos enriquecer com o contributo do seu trabalho, quantas vezes tão duro, e com a  sua alegria. A Geração Beat é dedicada a esse fenómeno que entusiasmou a nossa juventude, misturando inquietação social e romantismo, sobretudo através da versão simpática que nos chegou através de Bob Dylan e dos seus amigos. Mas o ano de 2010 ficou ainda assinalado pela excepcional conjugação de história, etnografia e observação penetrante que se fundem nesse álbum de conhecimentos, memórias e vivências, a  que deu o título Os Garranos na Península Ibérica, enriquecido pelos trabalhos de excelente qualidade fotográfica do Amândio de Sousa Vieira. O centenário da República forneceu a Luís Dantas a motivação para se abalançar a uma exaustiva recolha de dados sobre os Deputados do Alto Minho na Primeira República, que não chegou a aparecer em livro, embora o valor do seu contributo prosopográfico e o interesse para a história da região o justificassem.
Não chegara ainda a meio o ano de 2011, quando o Luís Dantas deixou a companhia dos seus amigos. Esse período foi todavia intenso na sua actividade literária. Ultimou vários livros para serem editados, e, embora em parte não chegassem a ser impressos, conhecemo-los através da sua publicação na Internet, que teve o cuidado de providenciar. Às nossas mãos já impresso veio ter Gomes Leal: o Anjo Rebelde: ultrapassa as raias da biografia e da crónica literária, para inserir o poeta na vivência cultural e política do seu tempo, em que se enquadra a proclamação da República, e resulta da vastidão das leituras e dos profundos conhecimentos do autor, complementados por uma longa série de leituras e alicerçados num sério e metódico trabalho de investigação.
Na Internet podemos ler Gonçalves Dias: o poeta do Maranhão, que estuda a vida e a obra literária do vate luso-brasileiro. A vertente transoceânica dos seus interesses literários manifesta-se também em Mário Domingues, o jornalista lisboeta, nascido na ilha do Príncipe, cuja alma Luís Dantas soube entender. Do olvido total salvou Luís Dantas um escritor bracarense que nasceu em 1870 e morreu cego e quase abandonado de todos, aos 48 anos – Alberto Madureira: um poeta esquecido é uma evocação comovente mas objectiva, que se ajusta dramaticamente à situação de um autor que a escreve quando, sem o saber, está prestes a concluir a sua vida.

“Ognuno sta solo sul cuor della terra
Trafitto da un raggio di sole:
Ed è subito sera”.
Salvatore Quasimodo, Acque e terre, Florença 1930

(Cada um de nós está sozinho sobre o coração da terra
Atravessado por um raio de sol:
E de repente é noite).

[Publicado na revista Limiana]