Um limiano para a eternidade
Em
Santa Maria Madalena, onde viviam os seus pais – António Dias, que durante
muitos anos cuidou com esmero do jardim que embelezava essa estância
panorâmica, e sua esposa Maria Gomes –, nasceu Manuel Gomes Dias, a 4 de Maio
de 1933, e, com os seus numerosos irmãos, aí passou a infância, entre a verdura
dos arbustos e os canteiros de flores. O local onde ocorreu o nascimento e
decorreram os mais tenros anos do pequeno Manuel pode tomar-se como emblemático
da sua maneira de ser e da sua vida futura: amplo panorama, larga visão, alguma
elevação, ainda que moderada e sem arroubos, muito sol, uma paisagem digna de
ser amada…
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No último ano de residência em Ponte de Lima |
Fez a instrução primária na vila de Ponte de Lima;
frequentou a secção masculina do Colégio D. Maria Pia e passou nas provas de
admissão aos estudos liceais.
Em entrevista concedida a um órgão da imprensa local,
referiu que ainda pensou seguir o curso de medicina, mas que, sendo essa
hipótese na altura inviável, decidiu, sem hesitar, matricular-se no Seminário
Diocesano de Braga, que começou a frequentar em 1946. Aí foi reconhecido como
bom aluno e, em anos mais avançados, despertou a atenção dos seus superiores
pela sua queda ou, como terá dito o Cónego Aguiar Barreiros, pelo seu “faro”
para os bens do património artístico e arqueológico. Com o mesmo Cónego Aguiar
Barreiros e com o Cónego Luciano Afonso dos Santos, colaborou, ainda
seminarista, na organização de algumas exposições realizadas em Braga. Por
ocasião de algumas dessas exposições, travou conhecimento com José Rosa de
Araújo, de quem se viria a tornar grande amigo e companheiro em lides de
reconhecimento arqueológico e de recolha etnográfica, na Ribeira Lima.
Ordenado sacerdote em 15 de Agosto de 1958, pelo
Arcebispo D. António Martins Júnior, nesse ano foi colocado como pároco na
remota freguesia de Sistelo, no concelho de Arcos de Valdevez, a cujo serviço
esteve durante três anos. Sistelo era uma paróquia situada nos extremos do
concelho arcoense, onde se iniciava um trilho de montanha, que ligava ao vale
do rio Mouro; na modéstia do lugar sobressaía apenas o revivalista e um tanto
frustre castelo do Visconde de Sistelo… Para além da assistência religiosa
prestada aos paroquianos, a estadia do P.e Manuel Dias em Sistelo
ficou marcada pelas obras de recuperação da residência da paróquia e pela
publicação de um boletim paroquial, facto tanto mais de assinalar quanto a
edição destes pequenos jornais, apesar de excelentes meios de comunicação,
sobretudo com os emigrantes, não era, nem é, tão frequente, mesmo em grandes
paróquias, quanto mais nesta humilde freguesia, escondida nas ilhargas da
serra.
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No início da sua vida activa |
Em 1961 foi transferido para a freguesia de Serdedelo, no
concelho de Ponte de Lima, próxima da localidade onde tinha nascido. Nos
primórdios da nacionalidade, Serdedelo, que já figurava no célebre testamento
da condessa Mumadona, era sede de um mosteiro feminino, cuja história permanece
obscura. Cedo extinto o mosteiro, Serdedelo manteve-se como paróquia religiosa,
mas nunca foi das mais avantajadas em território e em número de habitantes:
apesar de tão ancestral presença nos anais da História, era uma freguesia
modesta, relativamente isolada, que só a estrada aberta no segundo quartel do
século XX tirou do isolamento. A passagem do P.e Manuel Dias ficou
registada com as obras de restauro da residência paroquial, tanto mais
necessárias, quanto até aí quase abandonada, porque a freguesia não dispunha
desde há muito de um pároco residente, o que aliás voltaria a acontecer no
futuro. Com o pastoreio da freguesia de Serdedelo, que se estende até ao lugar
da Armada, localizado na nascente do rio Trovela, foi-lhe confiada também a da
Boalhosa.
O isolamento geográfico destas localidades permitiu que
nelas sobrevivessem durante mais tempo algumas tradições e costumes, a cujo
registo e estudo o P.e Dias dedicou meritoriamente a atenção, ainda
que por vezes esse trabalho tenha sido olhado com alguma incompreensão ou mesmo
com uma certa hostilidade. Dessa época datam algumas notas, por exemplo, sobre
o jogo do pau e sobre costumes funerários.
Em Outubro de 1968, iniciou a actividade como pároco da
freguesia da Labruja, no mesmo concelho de Ponte de Lima. A localidade
fora atravessada pela antiga via romana, que saía de Braga em direcção à Galiza
e, em meados da Idade Média, deu lugar ao chamado Caminho de Santiago,
percorrido por inúmeros peregrinos e almocreves. A Labruja aparece já referida
em vetustos documentos como sede de um mosteiro, criado pelo bispo Ermóigio,
que aí se refugiou na altura das incursões normandas. Deu nome a um dos
arcediagados da diocese de Tui, que abrangeria o território correspondente ao
vale do rio homónimo e algumas áreas mais próximas. No século XVII, a Labruja
aumentou a sua notoriedade com a erecção, devida ao mecenatismo de um
“brasileiro”, do Santuário de Senhor do Socorro, que constitui o núcleo central
de um projecto, elaborado sob a influência de outros “sacri monti”, e
designadamente do Bom Jesus de Braga, que não chegou a ser inteiramente
concluído, mas deixou aos vindouros um templo com certa grandiosidade
cenográfica, onde, desde a sua origem, se realiza um concorrida festa anual. A
actividade do P.e Manuel Dias contribuiu para acentuar o prestígio
alcançado pelo santuário, pelas suas festas e pela freguesia de Labruja.
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Com um grupo de amigos, em Santa Maria Madalena (9/3/1968) |
Na altura em que noticiava a sua entrada em funções na
Labruja, o semanário Cardeal Saraiva, em 18 de Outubro de 1968, escrevia: “A
sua obra pastoral orienta-se pelos mais altos princípios, sendo notável o seu
esforço para arrancar ao obscurantismo cultural e religioso as populações a ele
confiadas. De inteligência bem formada e culto, foi professor do ensino
secundário no Externato Cardeal Saraiva, em Ponte de Lima. Tem colaborado na
imprensa, devendo-se-lhe duas exposições de arte e o contributo para vários
estudos arqueológicos”.
Data de 1971 o início da sua participação nas festas
concelhias de Ponte de Lima como membro da Comissão Organizadora das Feiras
Novas, cujo principal contributo foi a organização dos Cortejos Históricos,
que, sob a sua orientação, se tornaram conhecidos pela sua beleza como
espectáculo, pela alegria da concepção, pela fidelidade do guião histórico,
para o qual no início tive o prazer de dar o meu contributo, assim como pelo
rigor dos trajes e pela adequação dos figurantes ao carácter dos personagens
que representavam.
A orientação anteriormente imprimida à sua actividade
continuou presente quando, em 1972, foi transferido para a freguesia de
Nogueira, berço de gente de palmarés em diversas áreas de actividade, no mundo
civil e eclesiástico, e muito conhecida no exterior devido à interessante
igreja românica de S. Cláudio, localizada no extremo sul da paróquia, exemplar
único no concelho de Viana do Castelo, divulgada no excelente livro de Aguiar
Barreiros, Igrejas e Capela Românicas da Ribeira Lima.
À frente da paróquia de Nogueira continuaria até ao fim da
sua vida activa, mesmo quando, nos últimos anos, sentindo-se inseguro,
transferiu a sua residência para a vila de Ponte de Lima. Durante o ano de
1991, prestou serviço também à paróquia de Gondar, situada no concelho de
Caminha. A sua disponibilidade era suficiente para dedicar uma parte do tempo
ao ensino na cidade Viana do Castelo, onde, durante vários anos, leccionou
disciplinas como Música, Língua Portuguesa, Geografia, Moral e Religião.
Mesmo a residir em Nogueira e no meio de outras actividades,
era frequente a sua deslocação à vila de Ponte de Lima, a que nunca voltou as
costas e onde a sua presença era sempre querida e estimulante.
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Com outros participantes nas escavações arqueológicas, em Braga (para identificar seguir a coordenada indicada pelas setas) |
Procurou valorizar-se permanentemente através do estudo e da participação em múltiplas actividades. Nos tempos iniciais da sua vida activa, e correspondendo a um apelo interior que já antes sentira, frequentou, em meses de verão, com alguns amigos de Ponte de Lima e muitos outros de Braga, um curso livre de arqueologia, nas instalações da Faculdade de Filosofia, em Braga, longe andavam ainda a Universidade do Minho e a Universidade Católica. O curso, em cuja base estava o entusiasmo do saudoso Cónego Arlindo Ribeiro da Cunha, Presidente da Junta Distrital, e do Dr. Egídio Guimarães, Director da Biblioteca Pública de Braga, ambos interessados na criação de um museu que se viria a desdobrar nos actuais Museu dos Biscainhos e Museu de Arqueologia de Braga, era proficientemente orientado pelo Dr. Rigaud de Sousa. Ao curso seguiram-se as escavações arqueológicas, que eram o seu principal objectivo, em Santa Marta da Falperra e na chamada Colina de Maximinos. No curso e nas escavações, participaram muitos jovens, alguns deles futuros investigadores, professores e até docentes universitários. Lembramo-nos da vianesa Salete da Ponte, do Eduardo Oliveira e de tanto outros.
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Com José Rosa de Ataujo, um amigo especial |
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Com outros amigos e conhecidos, numa
"embaixada cultural" a Ourense, em 1984
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Com alguns amigos, em S. António dos Mixões da Serra (1968-1970) |
Deu uma apreciável achega para a história do desporto em
Ponte de Lima, quando presidiu com brilho à direcção do Clube Desportivo Os
Limianos. Contribuiu de um modo especial para a revalorização do Caminho
de Santiago no concelho de Ponte de Lima, que levou, inclusivamente à
criação da Pousada para Peregrinos.
A sua vida está marcada por uma grande bonomia, dotado que
era de um espírito de grande abertura a toda a espécie de pessoas, mas
especialmente aos mais jovens e aos mais simples, sem qualquer espécie de
exclusivismos ou de preconceitos. Em certa medida também por isso houve pessoas
que não gostaram dele e até o perseguiram.
Uma das razões de alguma da má vontade de que
foi vítima, e que lhe deixou alguma amargura, esteve nas simpatias políticas
que manifestou em certa fase da sua vida. Em Fevereiro de 1969, com um
grupo de cidadãos pontelimenses, entre os quais se contava também o autor
destas linhas, assinava um comunicado encabeçado pelo saudoso Dr. Abel Carneiro
(autor da iniciativa), apelando aos cidadãos de ambos os sexos para que se
inscrevessem nos cadernos eleitorais, de modo a poderem votar nas eleições para
deputados que teriam lugar nesse ano. Tal acto foi visto como um sacrilégio e
motivou intrigas nos meios “piedosos” e “situacionistas” da vila, com denúncias
aos superiores eclesiásticos, nas quais foi injusta e especialmente visado o P.e
Manuel Dias. Após o 25 de Abril de 1974, não escondeu a sua predilecção por um
movimento político, o MDP-CDE, e, embora já residisse em Viana, esteve até com
os representantes deste movimento numa campanha realizada em Fontão, onde foram
abusivamente detidos. Essa participação, naturalmente discutível, e que lhe
trouxe dissabores, deve ser avaliada num contexto em que, na sua maior parte,
os párocos do concelho de Ponte de Lima exerceram de algum modo a sua
influência a favor de algum dos partidos políticos.![]() |
Com a medalha de cidadão de mérito de Ponte de Lima |
O Centro de Estudos Regionais, prestigiada agremiação
cultural com sede em Viana do Castelo mas cujo âmbito de acção abrange todo o
Alto Minho, promoveu-o à categoria de Sócio de Mérito, em Assembleia Geral de
19 de Março de 2005, e, em boa hora, a Câmara de Ponte de Lima, também por
unanimidade, decidiu conferir-lhe a medalha de
prata de mérito cultural, com que foi agraciado em Março de 1996.
Publicou vários escritos no Arquivo do Alto Minho, no
Arquivo de Ponte de Lima, na Límia e no Serão de José Rosa
de Araújo, na revista Estudos Regionais, no periódico Anunciador da
Feiras Novas, no semanário Cardeal Saraiva, na Coletânea de
Autores Limianos Contemporâneos e no Boletim Municipal de Ponte de Lima.
De entre os títulos que publicou, respigamos os seguintes:
“Paleolítico no Concelho de Ponte
de Lima”, Arquivo do Alto Minho, vol. 15 [V.º da 2.ª série] (1967), p. 92-96 (colaboração com Afonso do Paço e Maria de Fátima
Melo);
“Um novo achado de machados de
talão em Monção”, Lucerna, 2.ª série, vol. II (1987), p. 11-14;
“O Cortejo Histórico das Feiras
Novas”, Anunciador das Feiras Novas, 6 (1989), p. 88-89;
“A Capela do Monte da Madalena em
Ponte de Lima”, Anunciador das Feiras Novas 8 (1991), p. 25-27;
“Centenário do nascimento do Cónego
Manuel José Barbosa Correia”, Anunciador das Feiras Novas 10 (1993), p.
60;
S. Tiago nas Imagens e Caminhos do
Alto Minho, Viana
do Castelo, Museu Municipal, 1993 (colab. com António Matos Reis e Rui A. Faria
Viana);
“Iconografia de São Tiago no Alto
Minho”, Estudos Regionais, 13-14 (Dezembro 1993), p. 73-78;
“A propósito de uma imagem da
Senhora de Fátima”, Anunciador das Feiras Novas 11 (1994), p. 123-125;
“A ascendência labrujense da Irmã
Maria da Conceição – a «Freirinha Santa» de Viana”, Anunciador das Feiras
Novas, 12 (1995), p. 110-111;
“Lendas e tradições do Caminho de
Ponte de Lima a Valença”, comunicação ao III Encontro sobre os Caminhos
Portugueses a Santiago, 1995. Actas publicadas pela Câmara M.
de Valença, 1997, p. 115-124;
“Fichas de Arqueologia – Antas e
mamoas”, Boletim Municipal de Ponte de Lima, 1 (Novembro, 1995), p. 20;
“Património do Concelho –
Castros”, Boletim Municipal de Ponte de Lima, 2 (Fevereiro, 1996), p.
16;
“O caminho de S. Tiago em Ponte de
Lima”, Anunciador das Feiras Novas, 13 (1996), p. 102-103;
“O Santuário do Senhor do Socorro
em Labruja”, em Colectânea de Autores Limianos Contemporâneos, Ponte de
Lima, Câmara Municipal, 1996, p. 71-73.
O Monte de Santa Maria Madalena, Ponte de Lima, Lethes Digital,
2007 recolha de textos publicados no semanário Cardeal Saraiva, em 1964 e
1965).
Cheio de anos e de merecimentos, como a
Bíblia diz acerca de alguns patriarcas, mas não poupado pelo sofrimento,
despediu-se deste mundo na quinta-feira santa, dia 2 de Abril de 2015, e foi
sepultado em Ponte de Lima na sexta-feira seguinte. Deixa entre os muitos que
com ele conviveram e, em geral, entre todos os seus conhecidos, e especialmente
entre os limianos, uma imagem de simpatia e de saudade.