sábado, 9 de julho de 2011

O moinho da minha infância...


   As ribeiras da minha terra estão ainda marchetadas de velhas e modestas construções em pedra rude – xisto aplicado com barro amarelo ou gra­nito simples – onde as águas cantam uma saudosa melopeia de séculos ou o silêncio as ajuda ocultar no meio dos salgueiros e amieiros que bor­dejam os prados. Onde a linfa imaculada salta nos açudes e fugazmente desabrocha em pequenas cachoeiras, a levada conduz ao moinho a que repetidas gerações iam triturar o grão alimentício.
   Era assim o moinho da minha infância, evocativo dos sonhos de uma vida incipiente, o qual também não conseguiu resistir ao abandono dos anos.
   Ficava nas margens do Trovela, em Fornelos, num cotovelo do caminho que de Trelães seguia para Oliveira ...

 Fotografia de Gualberto Boa-Morte Galvão (Foto Contacto)
    Quando a fornada (o pão cozido no forno doméstico) estava prestes a acabar, ia-se saber da chave. A vez ficava assim marcada.
   À tardinha ou à noite, conforme urgia, lá íamos até ao moinho. Os mais pequenos - pelo gosto da viagem, pelo sortilégio nocturno das melopeias e ruídos – haviam de seguir na companhia. As mulheres, aliás, responsáveis pela tarefa, como por todas as demais de teor doméstico, para dissuadir o medo e a possibilidade de agressão, à carência dos maiores, requisitavam a sua colaboração indispensável.
   A cabeça ia o saco de farinha, feito de linho e cheio de milho, a saca com a mistura de centeio, e, na mão, a pequena vassoura do moinho, de piassaba.
   Pau na unha, para arrimo e estorvo dos cães, lampião no braço, atraves­sávamos o Outido, lugar de casas juntas, depois a congosta da Tomada, as poças da Gramosa. Um ou outro cachorro nos desafiava. Em breves minutos púnhamo-nos em Trelães, e, fazendo duas curvas, entrávamos no moinho. Lá no céu, azul e frio, algumas estrelas abriam e fechavam as pestanas luzentes, fazendo-nos antessonhar o poema de Guerra Junqueiro, que, dois anos após, havíamos de ler embevecidos no livro da quarta classe. Aqui a moleirinha não tinha jerico, nem chicote de giesta, mas a poesia da noite era igual ...
   Antes de apeirar o moinho, era necessário ir pela água, que não raro entrava nos pejeiros, demorando nos prados ou milheirais da levada inter­média ou mais longe, no Carrascal, e na época das sementeiras, para evitar prejuízos, era guiada para o rio.
   São conhecidas por estas margens duas espécies de moinhos. Os de grande roda vertical, em madeira, com maior capacidade e mais recentes – diz-se que de origem mourisca – eram explorados pelos moleiros, que faziam deles o seu ganha-pão. Apesar da relativa modernidade da sua fábrica, a mais adiantada em engenharia utilizando máquinas de madeira, foram desaparecendo para ceder o lugar às modernas indústrias de moagem ...
   De construção mais leve e arcaboiço mais singelo, os moinhos de rodízio eram mais vulgares e numerosos ...
   Na arquitectura do moinho, havia duas secções distintas: o trabunhado (parte de cima) e o cabouco (parte de baixo, onde passava a água).
   À entrada ficavam, de um e outro lado, duas tarimbas que tanto serviam para colocar os sacos de milho como para descansar o corpo, quando se tornasse necessário aguardar umas horas para apejar o moinho ou a levada carecesse de vigia nocturna.

  Fotografia de Gualberto Boa-Morte Galvão (Foto Contacto)
     O milho depositava-se na adelha (espécie de pirâmide invertida, aberta pela base e suspensa do telhado), donde saía pelo quelho, sacudido por uma vareta de madeira, chamada cadelo. Introduzia-se este por um orifício ao lado do centro do taburno (tampa de madeira que superiormente fechava as mós) para receber as vibrações que a mó de cima, ou mó girante, lhe transmitia.
   Entrado o grão pelo olhal da mó girante, espalhava-se, por acção da força centrífuga, sobre a mó-de-baixo e, embalado num doce rom-rom, transformava-se na farinha branca, de cheiro acre e agradável. Abria-se a camba (resguardo lateral, de madeira) para a recolher, com a vassoura de piassaba, no saco da fornada, de linho branco, sucessor dos antigos foles, de pele de carneiro.
   A água, entrando pelo cubo, oblongo e rectangular, saía no cabouco através da seteira, que, mercê da estreiteza, a projectava com força nas penas do rodízio. A este servia-lhe de eixo o veio de madeira (veiro do moinho), que transmitia à mó superior os movimentos do rodízio, e, por intermédio de outro seixo mais pequeno e fino, se apoiava numa soca de pedra, constituída por um grande seixo redondo.
 
Seixo do veiro e soca de apoio 
(das últimas que serviram no moinho da minha infância)

   Para regular a entrada da água, e por conseguinte a velocidade do moinho, havia um regidouro, comandado, através dum arame, do compar­timento de cima. Uma manivela de ferro controlava a elevação do rodízio, podendo retirá-lo ao impulso do jacto da água.
   Dentro da adelha, um peso de ferro segurava a alavanca que mantinha erguido o quelho, regulando assim a queda do grão. Quando o milho ia para o fim, a alavanca soltava-se, deixava descer o quelho, assim evitando que algum cereal permanecesse na adelha. Este resto era o pejadouro. Quando, de propósito ou não, o maquinismo não funcionasse, era preciso ir expressamente apejar o moinho.
   Moía-se por fim a mistura, de centeio e raras vezes de trigo, que entrava na composição da fornada. Faltava só passar a chave a novo consorte.  
António Matos Reis