quarta-feira, 13 de julho de 2011

Luís Dantas e as "Figuras populares"

Recordando Luís Dantas e as
"Figuras populares de Ponte de Lima"




     Este texto foi escrito para a revista Limiana, onde efectivamente foi publicado. Ao redigi-lo, estava longe de imaginar que o Luís Dantas nos viria a deixar tão depressa, quando muito se esperava ainda da perícia com que sabia, como nenhum outro limiano, praticar a arte da escrita. Para que se torne acessível a mais leitores, aqui o voltamos a publicar, em jeito de modesta mas sentida e sincera homenagem.


     Os últimos dias da Primavera deste excêntrico ano de 2009 colocaram-me nas mãos o livro de Luís Dantas que há muito esperava. Lembrando-me dos tempos em que a maior parte se não todas estas crónicas foram aparecendo na imprensa local, muitas vezes manifestei o meu desejo pessoal de as ver recolhidas num pequeno (neste caso, um grande) livro.
     “Figuras populares de Ponte de Lima” situa-se na galeria de outras obras já clássicas da literatura portuguesa, como Os Simples, de Guerra Junqueiro, Os Pobres, de Raul Brandão, e próximo lhe andam os Humildes de José Caldas e até o Rasto de Sombras de José Rosa de Araújo, e tantos outros, só que, neste caso, nos sentimos mais próximos deste livro porque o autor se deu à tarefa de resgatar do olvido algumas personagens que povoaram o nosso quotidiano.
     Ponte de Lima nasceu, em ambiente propício, de um cruzamento de estradas ̶ a via fluvial e a estrada romana ̶ e foi atravessada com frequência por personagens singulares, que faziam o seu caminho ou nele andavam à deriva, vagabundos e peregrinos, como os bem-aventurados Abdão e Romeu, e andarilhos e santos, como a Rainha Santa Isabel, jograis, almocreves, guerreiros, e toda a casta de gente. Vieram mais ou menos de longe, albergaram-se numa estalagem ou estanciaram à porta da Misericórdia, à espera de um naco de pão, para se alimentarem, ou de bálsamo para tratar uma chaga, e afastaram-se, deixando a sua sombra diluída na poeira dos caminhos,.
     Mas as figuras que Luís Dantas eterniza neste livro não chegaram da distância, mas irromperam na hora, vindos do quase-nada e sempre na sua raia, percorrendo o nosso mundo como seres praticamente insignificantes mas carregados de intenso dramatismo, a darem-nos e a pedirem-nos, com frequência, uma atenção fugidia.
      Do tempo dos meus avós, Lourenço o Preto tornou reviva a velha lenda do Letes: esquecido das suas origens, fez das margens do Lima a sua Pátria e deu-se-lhe com paixão, trabalhando, cultivando a música e ajudando os outros a serem felizes. Mais recente e a seu modo, o Pinta Ratos deixou-se embalar por amor romântico, sem cuidar do ridículo que o fez atravessar a vida ensimesmado e entregue aos seus desenhos.
     Diante dos nossos olhos perpassam o João da Luciana, com as bandas de música a actuar ao som da política…, o Caetano Ferrajola, no meio de uma história de bruxas, e ainda o João da Bomba, o Januário Fazenda, o João da Barca “mestre na arte de ferrador”, o Joaquinzinho, o Sucateiro…
     E de um lance estamos perante o Mário, sofrido mas logo bem humorado, se lhe puxavam pela língua para contar a história de um amor passageiro, que não conseguia relatar a direito, ou o incitavam a cantar o “Rosinha, minha Rosinha”.
     O Guerrinha vem acompanhado pelos seus cabeçudos, pelos livros de versos e pelos famigerados “testamentos de Judas”. O Zé Povo aparece eternizado com o episódio que protagonizou na representação dos ”Turcos” de Crasto. E depois vem o Zé Caraitas, cuja filáucia nos primeiros cortejos históricos das Feiras Novas ninguém esquece.
     Seguem-se o São Roque, especialista em identificar galinhas roubadas das capoeiras, o Pai Quim, brasileiro fracassado e estafeta, o Manuel Cauteleiro, enigmático vendedor de lotarias com “direito a farda e boné com chapa dourada”, e ainda o João da Mena, engraxador e gentleman atencioso.
     E não concluiremos a leitura sem evocar o João Nabiça, tão apaixonado executante de instrumentos de percussão na banda de música como apreciador de uma boa tigela de carrascão, bebida nos intervalos; o Zé Ferreiro implacável frequentador do tribunal; o Cachadinha, com tasca do “melhor vinho do mundo” nas feiras e romarias, concertina a tiracolo e versos de pé-quebrado para mimar os fregueses; e o Se Luís o “Gato” da Feitosa, sempre na companhia da sua bicicleta.
     Para terminar, leia-se a comovente história do saudoso José Brandão, que nunca se curou das maleitas causadas pela guerra colonial nem da paixão assolapada que lhe corroeu a alma. Há ainda a crónica dedicada ao Néu Franquinha, e, a encerrar, em tom de justo louvor, uma evocação das inesquecíveis Lavadeiras do Rio Lima.
     Como um bom artista plástico, o autor soube individualizar o traço característico dos seus retratados e fixá-lo no papel em poucas linhas, com pinceladas rápidas e cheias de verve. Ao reler o seu livro, estas figuras reaparecem, salvas do tempo que as arrastara consigo para os meandros do esquecimento, e é como se de novo cruzassem os nossos caminhos.
     Luís Dantas levou-nos a reviver uma época singular da pequena história local, que em grande parte coincide com as décadas centrais do século XX, quando o ritmo da vida se estava a modificar, com algumas incursões num período mais remoto, designadamente quando evoca as típicas figuras do Lourenço Preto e do Pinta Ratos. Manuseando a escrita como Miguel Ângelo manuseava o escopro, dono de uma agilidade expressiva e de uma economia de linguagem verdadeiramente ática, faz destes seres humildes, que aos mais peralvilhos se mostravam desprezíveis, um motivo de simpatia. Porque, mais para além do aprumado recorte literário, estas pequenas crónicas sobressaem pela empatia que o autor consegue estabelecer entre os retratados e os leitores.

António Matos Reis

sábado, 9 de julho de 2011

O moinho da minha infância...


   As ribeiras da minha terra estão ainda marchetadas de velhas e modestas construções em pedra rude – xisto aplicado com barro amarelo ou gra­nito simples – onde as águas cantam uma saudosa melopeia de séculos ou o silêncio as ajuda ocultar no meio dos salgueiros e amieiros que bor­dejam os prados. Onde a linfa imaculada salta nos açudes e fugazmente desabrocha em pequenas cachoeiras, a levada conduz ao moinho a que repetidas gerações iam triturar o grão alimentício.
   Era assim o moinho da minha infância, evocativo dos sonhos de uma vida incipiente, o qual também não conseguiu resistir ao abandono dos anos.
   Ficava nas margens do Trovela, em Fornelos, num cotovelo do caminho que de Trelães seguia para Oliveira ...

 Fotografia de Gualberto Boa-Morte Galvão (Foto Contacto)
    Quando a fornada (o pão cozido no forno doméstico) estava prestes a acabar, ia-se saber da chave. A vez ficava assim marcada.
   À tardinha ou à noite, conforme urgia, lá íamos até ao moinho. Os mais pequenos - pelo gosto da viagem, pelo sortilégio nocturno das melopeias e ruídos – haviam de seguir na companhia. As mulheres, aliás, responsáveis pela tarefa, como por todas as demais de teor doméstico, para dissuadir o medo e a possibilidade de agressão, à carência dos maiores, requisitavam a sua colaboração indispensável.
   A cabeça ia o saco de farinha, feito de linho e cheio de milho, a saca com a mistura de centeio, e, na mão, a pequena vassoura do moinho, de piassaba.
   Pau na unha, para arrimo e estorvo dos cães, lampião no braço, atraves­sávamos o Outido, lugar de casas juntas, depois a congosta da Tomada, as poças da Gramosa. Um ou outro cachorro nos desafiava. Em breves minutos púnhamo-nos em Trelães, e, fazendo duas curvas, entrávamos no moinho. Lá no céu, azul e frio, algumas estrelas abriam e fechavam as pestanas luzentes, fazendo-nos antessonhar o poema de Guerra Junqueiro, que, dois anos após, havíamos de ler embevecidos no livro da quarta classe. Aqui a moleirinha não tinha jerico, nem chicote de giesta, mas a poesia da noite era igual ...
   Antes de apeirar o moinho, era necessário ir pela água, que não raro entrava nos pejeiros, demorando nos prados ou milheirais da levada inter­média ou mais longe, no Carrascal, e na época das sementeiras, para evitar prejuízos, era guiada para o rio.
   São conhecidas por estas margens duas espécies de moinhos. Os de grande roda vertical, em madeira, com maior capacidade e mais recentes – diz-se que de origem mourisca – eram explorados pelos moleiros, que faziam deles o seu ganha-pão. Apesar da relativa modernidade da sua fábrica, a mais adiantada em engenharia utilizando máquinas de madeira, foram desaparecendo para ceder o lugar às modernas indústrias de moagem ...
   De construção mais leve e arcaboiço mais singelo, os moinhos de rodízio eram mais vulgares e numerosos ...
   Na arquitectura do moinho, havia duas secções distintas: o trabunhado (parte de cima) e o cabouco (parte de baixo, onde passava a água).
   À entrada ficavam, de um e outro lado, duas tarimbas que tanto serviam para colocar os sacos de milho como para descansar o corpo, quando se tornasse necessário aguardar umas horas para apejar o moinho ou a levada carecesse de vigia nocturna.

  Fotografia de Gualberto Boa-Morte Galvão (Foto Contacto)
     O milho depositava-se na adelha (espécie de pirâmide invertida, aberta pela base e suspensa do telhado), donde saía pelo quelho, sacudido por uma vareta de madeira, chamada cadelo. Introduzia-se este por um orifício ao lado do centro do taburno (tampa de madeira que superiormente fechava as mós) para receber as vibrações que a mó de cima, ou mó girante, lhe transmitia.
   Entrado o grão pelo olhal da mó girante, espalhava-se, por acção da força centrífuga, sobre a mó-de-baixo e, embalado num doce rom-rom, transformava-se na farinha branca, de cheiro acre e agradável. Abria-se a camba (resguardo lateral, de madeira) para a recolher, com a vassoura de piassaba, no saco da fornada, de linho branco, sucessor dos antigos foles, de pele de carneiro.
   A água, entrando pelo cubo, oblongo e rectangular, saía no cabouco através da seteira, que, mercê da estreiteza, a projectava com força nas penas do rodízio. A este servia-lhe de eixo o veio de madeira (veiro do moinho), que transmitia à mó superior os movimentos do rodízio, e, por intermédio de outro seixo mais pequeno e fino, se apoiava numa soca de pedra, constituída por um grande seixo redondo.
 
Seixo do veiro e soca de apoio 
(das últimas que serviram no moinho da minha infância)

   Para regular a entrada da água, e por conseguinte a velocidade do moinho, havia um regidouro, comandado, através dum arame, do compar­timento de cima. Uma manivela de ferro controlava a elevação do rodízio, podendo retirá-lo ao impulso do jacto da água.
   Dentro da adelha, um peso de ferro segurava a alavanca que mantinha erguido o quelho, regulando assim a queda do grão. Quando o milho ia para o fim, a alavanca soltava-se, deixava descer o quelho, assim evitando que algum cereal permanecesse na adelha. Este resto era o pejadouro. Quando, de propósito ou não, o maquinismo não funcionasse, era preciso ir expressamente apejar o moinho.
   Moía-se por fim a mistura, de centeio e raras vezes de trigo, que entrava na composição da fornada. Faltava só passar a chave a novo consorte.  
António Matos Reis

terça-feira, 5 de julho de 2011

Para começar...

Ziguezague faz o rio,
ziguezague faz a serra.
Ziguezague, ziguezague,
oh que linda a minha terra!

     PONTE DE LIMA nasceu do fe­liz encontro entre o homem e a natureza, de que resultou uma paisa­gem variada, repartida en­tre montanhas de moderada altitude e outeiros ou colinas ro­deadas de encostas soalheiras e vales amenos, regados por cór­regos e levadas de água fresca, que confluem no rio Lima. Nasce este nas cercanias de Xinzo de Limia, na fonte do Talariño, si­tuada nos contrafortes da serra de S. Mamede. Dirigindo-se para o sudoeste, vencido o rápido de­clive do curso intermédio, que podemos considerar terminado na foz do Vez, no decurso do qual encontra descanso em grandes al­bufeiras, torna-se mais regular após o último açude, em Refoios; começa aí a parte mais calma do percurso, encaminhando-se lenta­mente, a serpentear na planície, para os lados de Viana, até desa­guar no Oceano.
     Nos relevos culminantes que cercam a zona, perante os quais a sensação de altura não é demasi­ado acentuada pelo nível do rio, pouco acima do próprio mar, não há arestas que firam e nem sequer é chocante a nudez ines­perada deste ou daquele bloco de granito que aflora aqui e além no meio de uma vegeta­ção densa e luxuriante. 
    O vale do Estorãos abre-se en­tre a serra de Arga, de um lado, e do outro as serras de Formigoso e Antelas. Entre a serra de Antelas e a da Miranda, situa-se o vale ali­mentado pelo ribeiro da Labruja. Entre o monte de S. Lourenço, o Oural e a Nó corre o Trovela. En­tre a Nó e o monte da Facha está o vale do rio Tinto. A estes espa­ços soma-se um outro, voltado a sul, para o rio Neiva, no trecho que vai desde Anais até Ardegão e Poiares.   
     

     Todas estas paisagens foram já modificadas pelo homem, que ar­roteou campos, sobrepôs socalcos, plantou arvoredo e salpi­cou de cor com as habitações pintadas de branco, algumas vezes de ocre, e cobertas de telhas da cor do barro vermelho.
     Uma rede emaranhada de es­tradas e caminhos atravessa as vei­gas e serpenteia pelas en­costas. O eixo principal é cons­tituído pela antiga via, no sentido norte-sul, que os romanos la­jearam aqui e além, assinalando-a com marcos miliários e fazendo-a atravessar o Lima nessa ponte que deu origem e nome à povoação, que se tornou o polo aglutinador de todos os espaços circundantes.Sucederam-lhe as modernas vias de comunicação, a culminar na recente auto-estrada.
     Para ter uma visão destes es­pa­ços e se compenetrar da ín­dole, ao mesmo tempo cheia de viço na­tural e de humanidade, desta paisagem, é indispensável subir a algumas das estâncias panorâmicas que se espalham através do con­celho.
     Santa Maria Madalena, com o seu parque ajardinado, oferece-nos uma síntese majestosa de toda a ribeira Lima, até ao Oceano. Em baixo, o rio, co­leante e vagaroso, acarinha a vila feiticeira; nas margens desdobra-se a característica paisagem limiana: pra­dos, milheirais, vinhas, florestas; igrejas, capelinhas brancas, pa­lace­tes e singelos casais de al­deia.
     Como delicioso lugar de paz, ao abrigo de sombra pacífica, onde não escasseia o ritmo gorgolejante da água fresca, a Senhora da Boa-Morte, um pouco acima dos tem­plos româ­nicos de S. Abdão e S. Tomé da Correlhã, oferece-nos, com o seu frondoso e repousante par­que, outra perspectiva sur­preen­dente das veigas limianas.
     Santo Ovídio, acessível por uma estrada florestal, patenteia-nos uma soberba panorâmica da vila com as suas pontes e o casario a reverem-se no rio len­dário.
     No alto da Serra de Arga, cujo acesso obriga a ultrapassar os limi­tes do concelho, desdobra-se, a perder de vista, o majes­toso pa­norama dos vales e ser­ranias do Minho e da Galiza.
     Do cimo do monte de S. Sil­ves­tre, nas cercanias de Freixo, abar­cam-se as terras situadas no vale do Neiva e seus arre­dores.
     Acolhidos por esta paisa­gem, que se oferece tão viçosa e deslumbrante, iniciamos o per­curso de um conjunto de iti­nerários, no tempo e no espaço, que nos ajudarão a conhe­cer melhor o concelho de Ponte de Lima.
 Texto de António Matos Reis